segunda-feira, 25 de abril de 2016

Não desistas

O ar rarefeito escasseava, o que o obrigava a aproveitar cada respiração. Aquela altitude era sempre difícil respirar, excepção feita ao guia, homem já batido naquelas andanças e aos sherpas que os acompanhavam. Era como se tivessem garrafas de oxigénio por debaixo dos seus Kitycows. Mas não para ele. A sua rotina de Nova York não era naquele registo. Respirava com dificuldade. Ofegava.

Enquanto descansava um pouco, a descer para a 2ª base para pernoitar, recordava a graçola que dizia quando nevava e a temperatura estava abaixo de 20ºC … Ao pé do Central Park, o Everest deve ser um passeio de meninos … onde estava agora o Starbucks mais próximo, onde um Latte Machiado bem quente correspondia ao seu maior desejo naquele momento?

O vento frio era como uma corrente de facas afiadas. Mesmo totalmente protegido, havia partes da sua cara que nada tinham, e eram essas que o massacravam. Mesmo com 3 pares de meias grossas, aquele bocadinho de pele exposta faziam a razia da sua temperatura interna. Regelava. 

Não estava só. Olhava para o resto dos elementos do seu grupo, todos presos em fila indiana ao guia aparentavam estar todos na mesma situação. No mesmo desespero. Tinham formado um grupo engraçado. Cinco suecas, cada uma delas mais gira que a do lado, um casal neozelandês e dois gêmeos franceses que, apesar de passarem muito do seu tempo nos Alpes, segundo eles, pareciam ser marinheiros de primeira água. 

Conseguiram voltar mesmo no limite do aceitável. Tinham demorado mais 2 horas que o previsto e era já a segunda tentativa de atingir a base seguinte. O casal neozelandês já tinha feito alguma pressão para não voltarem a fazer aquela 2ª tentativa mas, por força do argumento dos restantes, haviam anuído à saída. Como se sentiam arrependidos. A montanha claramente lhes dizia que aquele não era o seu lugar. Que estavam a mais.

Fã incondicional do livro “O monge que vendeu o seu ferrari”, queria escrever um livro inspirador e com suporte a uma aventura real. Precisava daquela experiência. Precisava de se superar. De testar os seus limites. Talvez tivesse ido longe demais e embarcado num desafio grande demais para si … um passo maior que a perna … mas agora era tarde. Agora não podia desistir.

Quando a hora chegou, recolheu à sua pequena tenda, que partilhava com 2 das novas amigas. O conforto da tenda transportava-o para as quentes paragens de um oásis, em muito ajudado pelo facto de dormir no meio de ambas, aquecendo-as e sendo por elas aquecido. Era um bónus que a viagem lhe tinha dado. Haviam já agendado uma semana em NY onde as iria receber e mostrar a cidade, mas isso é outra história. Por agora, era repousar que de manhã, em função das condições climatéricas, haveriam de decidir seguir ou regressar à base. A glória da conquista da montanha ou a vergonha da derrota por esta. Amanhã decidiriam.

Aninhou-se nas suas parceiras e adormeceu de cansado ao som dos seus pensamentos … não desistas!

sábado, 16 de abril de 2016

E agora, Mrs Jones?


Era tarde, muito tarde. A televisão passava um filme nostálgico, daqueles de fazer chorar as pedras da calçada. Era já antigo, quase a pedir uma reciclagem, porém, continuava a ter ainda aquele encanto especial. Era uma daquelas histórias que fazia sonhar. Lá longe na cozinha, no fogão, a chaleira apitava viva e freneticamente. Era tarde.

No pequeno sofá Nina repousava e ronronava. O seu rabo oscilava e chicoteava a almofada num ritmo pausado mas constante. Longe iam já aqueles dias de juventude irrequieta que tantos pequenos estragos haviam produzido, especialmente no sofá. Era uma companheira de longa data, muitas vezes confidente. Ouvia e ficava a fitar, fechando os olhos como que em sinal de apoio. Uma boa companheira.

Abriu o armário por cima do micro-ondas. Na primeira fila da prateleira de baixo, metade era ocupado por caixas de chá. Havia chás para todos os gostos e feitios. Desde os tradicionais de pacote, que lhe faziam lembrar os fast-food, passando pelos ingleses que havia trazido na pequena loja ao pé de Russell Square, até aos mais exóticos trazidos pela sua amiga da última viagem feita à India. Optou por uma chá de infusão de Jasmim. 

Na gaveta por debaixo do fogão encontravam-se os principais acessórios de cozinha. Depois de remexer um pouco, encontrou o que procurava. Agora já podia encher de chá para colocar dentro da chaleira. E assim fez.

Na sala, a pequena mesa de apoio em madeira de mogno já estava composta com um pequeno recipiente de água fria, algumas bolachas “típical British” e dois guardanapos, a par de dois pacotes de açúcar. Há muito que tentava abolir esse mal amado ingrediente mas o hábito não lhe permitia. Lembrou-se dos resultados do último check-up e da promessa que havia feito ao seu médico de família, mas o “para a semana começo” ainda estava válido. 

O filme caminhava já a passos largos para o seu desenlace, mas certamente a seguir viria outro. Encostou-se a olhar para Nina, mais que para a televisão enquanto a sua mente divagava. Estava longe, mas não tinha pressa de voltar. O chá estava ainda muito quente e não lhe apetecia juntar água fria … era tempo de esperar.

Reclinou-se um pouco mais no sofá.

E eis senão quando um som familiar. O telemóvel vibrou ao som de um pato … “Quac, Quac” … entrara uma nova mensagem … tremeu … assustou-se … não estava à espera. Num gesto involuntário, hoje em dia normal e instintivo, jogou a mão ao bolso do robe e agarrou o telemóvel. Leu  mensagem que acabava de chegar e ficou a olhar para ela … por esta não esperava!

O chá arrefecia na chávena, na televisão anunciavam o filme que iria começar e Nina, entretanto acordada pelo som do telemóvel, havia já pousado a cabeça e fechado os olhos … E agora Mr. Jones? … pensava para si … e agora?





sábado, 2 de abril de 2016

Seguindo

 
Lá ao fundo, tornava-se impossível dizer onde terminava o mar e começava o céu. O azul tépido da água confundia-se com o azul nublado e, até onde a vista conseguia alcançar, tudo era mar .... e tudo era céu.
 
Ismael continuava sentado no pontão havia já muito tempo. Os seus cães já haviam explorado todas as redondezas, todas as covas de coelho num raio de 50 metros, todos os arbustos e repousavam agora calmamente ao seu lado. De vez em quando um barulho qualquer ou uma gaivota mais atrevida faziam um deles levantar a cabeça, mas rapidamente olhavam para o impávido dono e voltavam a deitar a cabeça. O sol ainda estava muito agradável, a brisa leve e um calor que os puxava para os braços de Morfeu. E eles deixavam-se ir sem grande resistência.
 
Ismael pensava em todas as viagens que havia feito, todos os portos que havia conhecido, todas as histórias e os bons momentos que guardava agora na sua memória. Todas haviam sido feitas por mares calmos, e agradecia a Deus por isso. Havia decidido deixar de se fazer ao mar e refugiar-se no campo ou na cidade. A sua vida de aventuras havia terminado e ele usava aquele momento para recapitular tudo. Reviver os bons momentos e pensar na experiência ganha pelo que não havia corrido bem. Uma espécie de sumário executivo.
 
Do local onde se encontrava conseguia ver o porto e a azafama que por lá ia. Claramente na uma zona mais exclusiva, onde um cruzeiro se preparava para zarpar, com vários turistas entusiasticamente a dizer adeus a tudo e a todos na esperança de um adeus de volta do cais. Porque será que achamos que haverá sempre um último adeus e apenas não partimos. Porque o barco não se limita a ir, sem adeus ou um qualquer “até um dia”?
 
Mais perto de si, algumas pequenas embarcações preparavam-se também elas para sair. Uma em particular dava ideia de ser uma pequena escuna que partia em passeio, certamente por alguns dias pelo número de sacos que a sua tripulação havia juntado na plataforma. Viam-se caixas de mantimentos, sacos de velas e afins. Notava-se o capitão a dar indicações para os dois gaiatos que preparavam as velas. Havia ali ordens claras a serem transmitidas e mãos eficientes, pelo menos assim parecia, a acatar essas ordens. Tirando um gato que repousava na coberta, todos os demais faziam algo.
 
Os seus olhos prendiam-se naquele quadro. E com aquela imagem divagava nos seus pensamentos. Pensava nas suas próprias viagens, desde as mais marcantes às últimas. Recordava com uma certa nostalgia, como aquelas pessoas que têm saudades antes mesmo da partida. E lembrava-se de uma frase ouvida “ter saudades não é bom” ..... será? Só se for de viagens atuais pois que de boas memórias temos sempre saudades. Não é bom porque representam algo que não existe mais, mas é ótimo por serem isso, recordações de bons momentos vividos ..... e no final, a vida resume-se a isso ..... aos bons momentos passados que fazem sentido ter vivido.
 
Recordava a última que quase havia sido curta demais para deixar memórias, e de onde havia decidido sair prematuramente, diria quase que clandestinamente. Fez-se esquecido no porto. Havia preferido embarcar noutra viagem e daí a mudança no primeira oportunidade possível. Mas nunca chegou a embarcar para a sua última viagem. E isso deixava-o estranhamente contente.
 
Tudo na vida acontece por um motivo. Guardava ainda nas mãos o livro que havia comprado para aquela última viagem, porém, a história que lhe vinha à cabeça não era essa. A sua mente divagava e imaginava o que Ishmael teria sentido antes de entrar no Pequot. Porque motivo não teria ele desistido daquela viagem que tão maus presságios aparentava. Imaginava-o ali, prestes a entrar e a pensar, como se revia a si mesmo. A tentação de partir numa nova viagem pode ser grande, porém, quando tudo aponta para ser um mar de tormentos e borrascas, há viagens que não devem ser iniciadas. No fundo sabia-o e por isso havia arrepiado caminho a tempo.
 
Não se sentia nenhum lobo do mar, mas sabia que havia tomado a decisão certa. Estranhamente a sua última viagem era aquela que nunca chegaria a fazer. Ironias do destino.
 
Uma gaivota mais barulhenta trouxe-o de volta à sua realidade, à medida que o sol descia calmamente sobre a linha do horizonte. Os tons de laranja refletidos nas nuvens pareciam uma fotografia de Photoshop e assim ficou mais um pouco a observar e a admirar tamanha beleza. Aproveitou para fazer festas aos seus meninos enquanto os últimos raios brilhavam e o cinzento começou a surgir, fazendo-lhe notar que já começava a ficar frio. Um bocejo e duas lambidelas sentenciaram a tarde. Eram horas de se fazer ao caminho.
 
Levantou-se calmamente. Na mão tinha ainda o livro embrulhado. A sua vida no mar tinha terminado e aquele livro significava para ele uma última amarra. Não o iria ler, por isso, não fazia sentido guardar algo que nem uma memória constituía. Nem boa, nem má. Olhou para ele uma última vez e para o horizonte e, sem perder mais tempo, deitou-o no caixote de lixo mais próximo.
 
Seguiram juntos pela costa de volta à cidade ..... o mar será sempre uma parte da sua história, mas sem mais viagens, apenas uma longa coleção de bons momentos vividos, que é o que vale a pena guardar.