domingo, 5 de abril de 2015

Consegui!

 
Mais um dia que chegava ao fim. O relógio marcava 22:34 e na televisão anunciavam com pompa e circunstância uma “bomba” que seria dada no último noticiário do dia. Mais um dia que terminava e o seu ânimo estava pelas ruas da amargura.
 
Andava há mais de 3 meses a tentar terminar o livro que há muito se havia proposto mas a inspiração faltava e nada parecia sair bem. Ou ficava deitado no sofá, olhando para o vazio com a vista posta na televisão, ou afagava suavemente o pelo dos seus dois belos e simpáticos cães. Até a consola de jogos há muito que estava esquecida a um canto ..... nem bateria os comandos já tinham. Não tinha energia para mais. Não conseguia.
 
Foi-se deitar. Nada mais tinha vontade de fazer.
 
O dia seguinte trouxe-lhe outra vida. Acordou tarde com o ruído dos seus meninos na porta a pedir carinho, atenção e, já agora, comida e passeio. Olhou para o relógio. Já passava das 11:30! Saltou da cama assustado ..... ao que se tinha deixado chegar. Tinha de fazer algo por si.
 
Deu de comer e beber aos seus meninos e depois guardou algum tempo para si. Entrou no chuveiro e demorou-se o tempo que quis, saboreando a água quente que lhe caia em cima da cabeça. Adorava aqueles momentos, porém, durante a semana não havia tempo para os apreciar. Agora podia. E assim o fez. Ficou mais de meia hora assim mas pareceu-lhe que foram 2 horas. Que revigorante eram aqueles minutos,  mesmo ficando um pouco mole da humidade que se havia formado. Depois de se vestir, colocou as trelas aos seus meninos e saiu para a rua. Teve de meter os óculos escuros pois os raios solares queimavam-lhe os olhos ..... e não tinha ido para os copos. Já fazia algum tempo que não o fazia, diga-se.
 
Hoje não tinha pressa. Apreciava o passeio tão ou mais que os seus cães, divertindo-se com a interação destes com os outros, com as crianças que lhes vinham fazer festas e que se deliciavam com as lambidelas que recebiam. Os seus meninos estavam contentes e ele também. Por entre muitas marcações de território e cheirar a relva, achava piada a fogosidade com que tentavam ir atrás dos gatos que timidamente se escondiam entre as folhagens. Foi um passeio bem maior que o habitual mas estava contente. Estavam todos contentes.
 
Após deixar os seus meninos em casa, pegou no seu carro e fez-se à estrada. No banco de lado repousava um tablet e uma máquina fotográfica. Saiu sem destino, apesar de se sentir compelido numa certa direção. Não sabia explicar o que sentia, apenas que o sentia. E foi andando e andando, até dar por si a entrar num pequeno caminho de terra que se dirigia ao mar. Levou o carro até onde podia, que era mesmo ao lado de uma esplanada com muito bom aspeto. Entrou nela e escolheu o que lhe pareceu o melhor lugar possível. Debaixo de uma sombrinha com vista para o mar e uma enseada que se formava um pouco à sua direita. Que vista maravilhosa.
 
Sentia-se em paz consigo mesmo. Ao invés de mais um dia a procrastinar em casa, saiu com um objetivo. Um fim. E todo aquele ambiente deu-lhe uma força interior para pegar no tablet e retomar a sua escrita. Leu o que tinha escrito na sinopse e no último capítulo, revendo os seus apontamentos de como queria dirigir o enredo que havia criado há muito tempo atrás. Tanto tempo que já nem se lembrava quando tinha começado, apenas que mais uma vez tinha começado algo que parecia destinado a não ter um fim. E ele precisava de dar fim ao que começava.
 
Foi pedindo bebidas e aperitivos. Parecia que quanto mais escrevia, mais lhe apetecia escrever. E quando deu por si, sentiu que tinha quase terminado o seu livro. Quase. Faltava um último parágrafo com algo que não conseguia explicar, mas no seu íntimo, sabia que faltava ali algo. Mais uma vez, não conseguia acabar. Era como se tivesse atravessado o oceano a nado e fosse morrer afogado na costa. Quebrou.
 
Não querendo dar novamente parte de fraco e não ser ainda desta que terminava, pousou o tablet ligando-o à corrente que felizmente ficava por perto. Pegou na máquina e bateu umas chapas. Sem querer tinha colocado a lente de 300 mm e ia fotografando pormenores soltos. Para além das pessoas na praia em frente, fotografava também as famílias que estavam na esplanada, capturando a preto e branco todos os pequenos pormenores que ia descobrindo. Na praia e pela posição do sol, tirou fotografias em contraluz de uma rapariga com um corpo espetacular. Mesmo com semanas de preparação dificilmente teria conseguido planear semelhante enquadramento. E aproveitou enquanto lhe apeteceu.
 
Pegou novamente no tablet e relia o que tinha escrito até que uma voz se fez ouvir atrás de si:
- Satisfeito com as fotografias? Já observou tudo o que tinha para observar?
 
Olhou instantaneamente para trás, não reconhecendo a voz. Era a rapariga a quem tinha estado a tirar fotografias, e não parecia nada contente.
 
- Já sim. Se sim era à satisfação das fotografias e apenas a isso
- Não sabe que é feio estar a espiar as pessoas? É por isso que venho para praias desertas, para fugir a mirones indiscretos
- Peço desculpa ..... apreciava a beleza pela beleza ..... e você é de facto uma bela mulher!
 
Notou na cara dela que as suas últimas palavras ainda a tinham deixado mais furiosa, ao pondo de achar que ela lhe ia bater. Foi preciso muita diplomacia para no meio de ameaças de polícia e exigência de que apagasse todas as fotografias, ela se sentasse à mesa para falarem com calma. Aquela fúria genuína ainda a tornava mais bonita, algo que apenas agora conseguia ver.
 
Mais calma agora, Joana ouviu a explicação sobre como tinha feito um intervalo para conseguir terminar a escrita e como apreciador de boas fotografias, se tinha distraído a fotografar a beleza que o rodeava. Apesar de desconfiada que era uma grande tanga, Joana pediu para ver o que ele tinha fotografado e o que era uma expressão dura rapidamente se transformou em calma e um sorriso nos lábios. As fotografias dele eram muito boas e naquelas que ela aparecia eram indiscutivelmente sublimes. O seu semblante pesado desapareceu para dar lugar a um olhar doce e meigo de quem se sentia envergonhada.
- Desculpa ..... não me estavas a espiar
- Não ..... mas não posso deixar de dizer que a tua bela figura deu-me fotografias de cortar a respiração
 
Ela corou ligeiramente. E com isto conversaram durante muito tempo. Depois de ele lhe explicar o bloqueio que tinha, ela ofereceu-se para o ajudar lendo o último capítulo.
 
- Parece muito bom, mas concordo contigo, falta-lhe algo
- Eu sei ..... é a história da minha vida ..... falta-me sempre algo
- Porque não terminas deixando no ar algo vago ..... para quem ler levar-se nas asas da imaginação
- Boa ideia ..... espera
 
Rapidamente pegou no texto e escreveu um último parágrafo. A figura principal estava numa esplanada e ao tirar fotografias, foi interpelado por uma bela rapariga que se sentiu ofendida, e, depois de muito conversarem, combinaram um jantar no dia seguinte para continuarem a conversa, uma vez que sentiram que já se conheciam há muito tempo e nenhum deles queria ir-se embora. Terminado o parágrafo, deu-o a ler à sua nova crítica.
 
Joana leu o texto e sorriu. Terminada a leitura, digitou algo no table, entregou-lhe com apenas uma palavra:
- Adeus
 
Estupefacto, não conseguiu esboçar qualquer outra reação senão somente segurar o tablet. Ficou a vê-la sair, parecendo-lhe cada vez mais bonita. Após este choque inicial, lembrou-se que a viu digitar algo e olhou para o texto. Joana tinha acrescentado algo no fim ..... o seu número de telefone e a hora a que queria que ele a fosse buscar.
 
Sorriu. Internamente gritou bem alto:
- Consegui ..... terminei o livro!
 
Dedicado ao meu Pantufas.