Mais um dia que
chegava ao fim. O relógio marcava 22:34 e na televisão anunciavam com pompa e
circunstância uma “bomba” que seria dada no último noticiário do dia. Mais um
dia que terminava e o seu ânimo estava pelas ruas da amargura.
Andava há mais de 3
meses a tentar terminar o livro que há muito se havia proposto mas a inspiração
faltava e nada parecia sair bem. Ou ficava deitado no sofá, olhando para o
vazio com a vista posta na televisão, ou afagava suavemente o pelo dos seus
dois belos e simpáticos cães. Até a consola de jogos há muito que estava
esquecida a um canto ..... nem bateria os comandos já tinham. Não tinha energia
para mais. Não conseguia.
Foi-se deitar. Nada
mais tinha vontade de fazer.
O dia seguinte
trouxe-lhe outra vida. Acordou tarde com o ruído dos seus meninos na porta a
pedir carinho, atenção e, já agora, comida e passeio. Olhou para o relógio. Já
passava das 11:30! Saltou da cama assustado ..... ao que se tinha deixado
chegar. Tinha de fazer algo por si.
Deu de comer e beber
aos seus meninos e depois guardou algum tempo para si. Entrou no chuveiro e
demorou-se o tempo que quis, saboreando a água quente que lhe caia em cima da
cabeça. Adorava aqueles momentos, porém, durante a semana não havia tempo para
os apreciar. Agora podia. E assim o fez. Ficou mais de meia hora assim mas
pareceu-lhe que foram 2 horas. Que revigorante eram aqueles minutos, mesmo ficando um pouco mole da humidade que
se havia formado. Depois de se vestir, colocou as trelas aos seus meninos e
saiu para a rua. Teve de meter os óculos escuros pois os raios solares
queimavam-lhe os olhos ..... e não tinha ido para os copos. Já fazia algum
tempo que não o fazia, diga-se.
Hoje não tinha pressa.
Apreciava o passeio tão ou mais que os seus cães, divertindo-se com a interação
destes com os outros, com as crianças que lhes vinham fazer festas e que se
deliciavam com as lambidelas que recebiam. Os seus meninos estavam contentes e
ele também. Por entre muitas marcações de território e cheirar a relva, achava
piada a fogosidade com que tentavam ir atrás dos gatos que timidamente se
escondiam entre as folhagens. Foi um passeio bem maior que o habitual mas
estava contente. Estavam todos contentes.
Após deixar os seus
meninos em casa, pegou no seu carro e fez-se à estrada. No banco de lado repousava
um tablet e uma máquina fotográfica. Saiu sem destino, apesar de se sentir
compelido numa certa direção. Não sabia explicar o que sentia, apenas que o
sentia. E foi andando e andando, até dar por si a entrar num pequeno caminho de
terra que se dirigia ao mar. Levou o carro até onde podia, que era mesmo ao
lado de uma esplanada com muito bom aspeto. Entrou nela e escolheu o que lhe
pareceu o melhor lugar possível. Debaixo de uma sombrinha com vista para o mar
e uma enseada que se formava um pouco à sua direita. Que vista maravilhosa.
Sentia-se em paz
consigo mesmo. Ao invés de mais um dia a procrastinar em casa, saiu com um
objetivo. Um fim. E todo aquele ambiente deu-lhe uma força interior para pegar
no tablet e retomar a sua escrita. Leu o que tinha escrito na sinopse e no
último capítulo, revendo os seus apontamentos de como queria dirigir o enredo
que havia criado há muito tempo atrás. Tanto tempo que já nem se lembrava
quando tinha começado, apenas que mais uma vez tinha começado algo que parecia
destinado a não ter um fim. E ele precisava de dar fim ao que começava.
Foi pedindo bebidas e
aperitivos. Parecia que quanto mais escrevia, mais lhe apetecia escrever. E
quando deu por si, sentiu que tinha quase terminado o seu livro. Quase. Faltava
um último parágrafo com algo que não conseguia explicar, mas no seu íntimo,
sabia que faltava ali algo. Mais uma vez, não conseguia acabar. Era como se
tivesse atravessado o oceano a nado e fosse morrer afogado na costa. Quebrou.
Não querendo dar
novamente parte de fraco e não ser ainda desta que terminava, pousou o tablet
ligando-o à corrente que felizmente ficava por perto. Pegou na máquina e bateu
umas chapas. Sem querer tinha colocado a lente de 300 mm e ia fotografando
pormenores soltos. Para além das pessoas na praia em frente, fotografava também
as famílias que estavam na esplanada, capturando a preto e branco todos os pequenos
pormenores que ia descobrindo. Na praia e pela posição do sol, tirou
fotografias em contraluz de uma rapariga com um corpo espetacular. Mesmo com
semanas de preparação dificilmente teria conseguido planear semelhante
enquadramento. E aproveitou enquanto lhe apeteceu.
Pegou novamente no
tablet e relia o que tinha escrito até que uma voz se fez ouvir atrás de si:
- Satisfeito com as
fotografias? Já observou tudo o que tinha para observar?
Olhou instantaneamente
para trás, não reconhecendo a voz. Era a rapariga a quem tinha estado a tirar
fotografias, e não parecia nada contente.
- Já sim. Se sim era à
satisfação das fotografias e apenas a isso
- Não sabe que é feio
estar a espiar as pessoas? É por isso que venho para praias desertas, para
fugir a mirones indiscretos
- Peço desculpa .....
apreciava a beleza pela beleza ..... e você é de facto uma bela mulher!
Notou na cara dela que
as suas últimas palavras ainda a tinham deixado mais furiosa, ao pondo de achar
que ela lhe ia bater. Foi preciso muita diplomacia para no meio de ameaças de
polícia e exigência de que apagasse todas as fotografias, ela se sentasse à
mesa para falarem com calma. Aquela fúria genuína ainda a tornava mais bonita,
algo que apenas agora conseguia ver.
Mais calma agora,
Joana ouviu a explicação sobre como tinha feito um intervalo para conseguir
terminar a escrita e como apreciador de boas fotografias, se tinha distraído a
fotografar a beleza que o rodeava. Apesar de desconfiada que era uma grande
tanga, Joana pediu para ver o que ele tinha fotografado e o que era uma
expressão dura rapidamente se transformou em calma e um sorriso nos lábios. As
fotografias dele eram muito boas e naquelas que ela aparecia eram
indiscutivelmente sublimes. O seu semblante pesado desapareceu para dar lugar a
um olhar doce e meigo de quem se sentia envergonhada.
- Desculpa ..... não
me estavas a espiar
- Não ..... mas não
posso deixar de dizer que a tua bela figura deu-me fotografias de cortar a
respiração
Ela corou
ligeiramente. E com isto conversaram durante muito tempo. Depois de ele lhe
explicar o bloqueio que tinha, ela ofereceu-se para o ajudar lendo o último
capítulo.
- Parece muito bom,
mas concordo contigo, falta-lhe algo
- Eu sei ..... é a
história da minha vida ..... falta-me sempre algo
- Porque não terminas
deixando no ar algo vago ..... para quem ler levar-se nas asas da imaginação
- Boa ideia .....
espera
Rapidamente pegou no
texto e escreveu um último parágrafo. A figura principal estava numa esplanada
e ao tirar fotografias, foi interpelado por uma bela rapariga que se sentiu
ofendida, e, depois de muito conversarem, combinaram um jantar no dia seguinte
para continuarem a conversa, uma vez que sentiram que já se conheciam há muito
tempo e nenhum deles queria ir-se embora. Terminado o parágrafo, deu-o a ler à
sua nova crítica.
Joana leu o texto e sorriu.
Terminada a leitura, digitou algo no table, entregou-lhe com apenas uma
palavra:
- Adeus
Estupefacto, não
conseguiu esboçar qualquer outra reação senão somente segurar o tablet. Ficou a
vê-la sair, parecendo-lhe cada vez mais bonita. Após este choque inicial,
lembrou-se que a viu digitar algo e olhou para o texto. Joana tinha acrescentado
algo no fim ..... o seu número de telefone e a hora a que queria que ele a
fosse buscar.
Sorriu. Internamente
gritou bem alto:
- Consegui .....
terminei o livro!
Dedicado ao meu Pantufas.