domingo, 28 de fevereiro de 2016

É só até ao fim dos nossos dias

 
3:17. Era o que o relógio do telemóvel marcava, pousado sobre o livro que havia em cima da sua mesa-de-cabeceira. Olhou de relance para o livro. Na realidade ele não deveria estar ali mas sim perdido, ou melhor, atirado para uma das inúmeras prateleiras de livros, entre tantos que lá estavam e que nunca seriam lidos. Aquele tinha demorado eternidades a vir da livraria para ali e apenas por vergonha ali estava. Lia por vezes a dedicatória mas não passava dessa parte. E ali ficaria, pelo menos para já.
 
A lembrança daquela agora longínqua viagem de comboio não saía do seu pensamento. Isso ou os pequenos nadas que agora faziam um todo. Dava voltas e mais voltas e não conseguia dormir. Tudo o que vivera depois desse episódio era agora revivido aos poucos. Teria feito bem ou mal. Não conseguia ter a certeza, e essa era a parte que mais a atormentava. Havia ficado presa a um passado e abdicado de um futuro. Agora sabia-o. Agora.
 
À cabeça, para alem de tudo mais, vinham-lhe à cabeça as palavras do Eustáquio que havia aprendido de tanto ouvir .... quando minha escolha é consciente, nenhuma repercussão me assusta. Quando não é, qualquer comentário me balança .....
 
Susana balançava .... muito ..... a prova disso é que não conseguia dormir. Agora sabia-o .... e sabia que agora podia ser tarde demais.
 
4:48. Os ponteiros analógicos dos minutos pareciam martelos a cada movimento. A cada 60 segundos. Sentia-os todos. Raios os partam que não lhe davam descanso.
 
Não conseguia mais ter posição. Olhava para a gaveta e recordava as últimas palavras “não sou um vibrador esquecido na gaveta apenas para quando tens necessidade” ..... e na sua mente formulava uma ideia imaginária de uma lista das suas prioridades para onde o tinha atirado para o final .... mesmo lá em baixo, quase quase na última linha.
 
Agora tinha essa consciência ..... agora .....
 
Levantou-se e vestiu o seu robe bege. Era quente e naquele momento precisava disso. Precisava de um pouco de calor e o toque suave das recordações que o robe lhe traziam. O resto da casa estaria frio, certamente, e ela não queria sentir aquela sensação de vazio assim. Não assim, não ao frio. Era violento demais para consigo.
 
Ligou o aquecedor e foi fazer um chá. À medida que a chaleira aquecia a água, também ela tentava aquecer o corpo e a alma. As mãos em concha por cima da chaleira era tudo o que o seu corpo dorido lhe permita. Escolheu o chá com um leve sorriso nos lábios – “Noites tranquilas” – como ela queria isso agora.
 
Sentou-se no sofá e ligou o equipamento de cabo. Percorreu os filmes e séries que tinha no arquivo e escolheu um filme. Podia ter escolhido qualquer outro, mas inconscientemente escolheu aquele por tudo ..... ou talvez por nada ..... e ficou debaixo da manta quente a apreciar o seu chá e a assistir ao filme. O seu sistema de som surround transportavam-na para dentro da tela.
 
A determinada altura ouviu a parte que mais temia desde o filme tinha começado.
 
- Que dizes? ..... é só até ao fim das nossas vidas ....
 
Uma lágrima desceu pelo rosto de Susana .....