sábado, 2 de abril de 2016

Seguindo

 
Lá ao fundo, tornava-se impossível dizer onde terminava o mar e começava o céu. O azul tépido da água confundia-se com o azul nublado e, até onde a vista conseguia alcançar, tudo era mar .... e tudo era céu.
 
Ismael continuava sentado no pontão havia já muito tempo. Os seus cães já haviam explorado todas as redondezas, todas as covas de coelho num raio de 50 metros, todos os arbustos e repousavam agora calmamente ao seu lado. De vez em quando um barulho qualquer ou uma gaivota mais atrevida faziam um deles levantar a cabeça, mas rapidamente olhavam para o impávido dono e voltavam a deitar a cabeça. O sol ainda estava muito agradável, a brisa leve e um calor que os puxava para os braços de Morfeu. E eles deixavam-se ir sem grande resistência.
 
Ismael pensava em todas as viagens que havia feito, todos os portos que havia conhecido, todas as histórias e os bons momentos que guardava agora na sua memória. Todas haviam sido feitas por mares calmos, e agradecia a Deus por isso. Havia decidido deixar de se fazer ao mar e refugiar-se no campo ou na cidade. A sua vida de aventuras havia terminado e ele usava aquele momento para recapitular tudo. Reviver os bons momentos e pensar na experiência ganha pelo que não havia corrido bem. Uma espécie de sumário executivo.
 
Do local onde se encontrava conseguia ver o porto e a azafama que por lá ia. Claramente na uma zona mais exclusiva, onde um cruzeiro se preparava para zarpar, com vários turistas entusiasticamente a dizer adeus a tudo e a todos na esperança de um adeus de volta do cais. Porque será que achamos que haverá sempre um último adeus e apenas não partimos. Porque o barco não se limita a ir, sem adeus ou um qualquer “até um dia”?
 
Mais perto de si, algumas pequenas embarcações preparavam-se também elas para sair. Uma em particular dava ideia de ser uma pequena escuna que partia em passeio, certamente por alguns dias pelo número de sacos que a sua tripulação havia juntado na plataforma. Viam-se caixas de mantimentos, sacos de velas e afins. Notava-se o capitão a dar indicações para os dois gaiatos que preparavam as velas. Havia ali ordens claras a serem transmitidas e mãos eficientes, pelo menos assim parecia, a acatar essas ordens. Tirando um gato que repousava na coberta, todos os demais faziam algo.
 
Os seus olhos prendiam-se naquele quadro. E com aquela imagem divagava nos seus pensamentos. Pensava nas suas próprias viagens, desde as mais marcantes às últimas. Recordava com uma certa nostalgia, como aquelas pessoas que têm saudades antes mesmo da partida. E lembrava-se de uma frase ouvida “ter saudades não é bom” ..... será? Só se for de viagens atuais pois que de boas memórias temos sempre saudades. Não é bom porque representam algo que não existe mais, mas é ótimo por serem isso, recordações de bons momentos vividos ..... e no final, a vida resume-se a isso ..... aos bons momentos passados que fazem sentido ter vivido.
 
Recordava a última que quase havia sido curta demais para deixar memórias, e de onde havia decidido sair prematuramente, diria quase que clandestinamente. Fez-se esquecido no porto. Havia preferido embarcar noutra viagem e daí a mudança no primeira oportunidade possível. Mas nunca chegou a embarcar para a sua última viagem. E isso deixava-o estranhamente contente.
 
Tudo na vida acontece por um motivo. Guardava ainda nas mãos o livro que havia comprado para aquela última viagem, porém, a história que lhe vinha à cabeça não era essa. A sua mente divagava e imaginava o que Ishmael teria sentido antes de entrar no Pequot. Porque motivo não teria ele desistido daquela viagem que tão maus presságios aparentava. Imaginava-o ali, prestes a entrar e a pensar, como se revia a si mesmo. A tentação de partir numa nova viagem pode ser grande, porém, quando tudo aponta para ser um mar de tormentos e borrascas, há viagens que não devem ser iniciadas. No fundo sabia-o e por isso havia arrepiado caminho a tempo.
 
Não se sentia nenhum lobo do mar, mas sabia que havia tomado a decisão certa. Estranhamente a sua última viagem era aquela que nunca chegaria a fazer. Ironias do destino.
 
Uma gaivota mais barulhenta trouxe-o de volta à sua realidade, à medida que o sol descia calmamente sobre a linha do horizonte. Os tons de laranja refletidos nas nuvens pareciam uma fotografia de Photoshop e assim ficou mais um pouco a observar e a admirar tamanha beleza. Aproveitou para fazer festas aos seus meninos enquanto os últimos raios brilhavam e o cinzento começou a surgir, fazendo-lhe notar que já começava a ficar frio. Um bocejo e duas lambidelas sentenciaram a tarde. Eram horas de se fazer ao caminho.
 
Levantou-se calmamente. Na mão tinha ainda o livro embrulhado. A sua vida no mar tinha terminado e aquele livro significava para ele uma última amarra. Não o iria ler, por isso, não fazia sentido guardar algo que nem uma memória constituía. Nem boa, nem má. Olhou para ele uma última vez e para o horizonte e, sem perder mais tempo, deitou-o no caixote de lixo mais próximo.
 
Seguiram juntos pela costa de volta à cidade ..... o mar será sempre uma parte da sua história, mas sem mais viagens, apenas uma longa coleção de bons momentos vividos, que é o que vale a pena guardar.