Lá ao fundo,
tornava-se impossível dizer onde terminava o mar e começava o céu. O azul
tépido da água confundia-se com o azul nublado e, até onde a vista conseguia
alcançar, tudo era mar .... e tudo era céu.
Ismael continuava
sentado no pontão havia já muito tempo. Os seus cães já haviam explorado todas
as redondezas, todas as covas de coelho num raio de 50 metros, todos os
arbustos e repousavam agora calmamente ao seu lado. De vez em quando um barulho
qualquer ou uma gaivota mais atrevida faziam um deles levantar a cabeça, mas
rapidamente olhavam para o impávido dono e voltavam a deitar a cabeça. O sol
ainda estava muito agradável, a brisa leve e um calor que os puxava para os
braços de Morfeu. E eles deixavam-se ir sem grande resistência.
Ismael pensava em
todas as viagens que havia feito, todos os portos que havia conhecido, todas as
histórias e os bons momentos que guardava agora na sua memória. Todas haviam
sido feitas por mares calmos, e agradecia a Deus por isso. Havia decidido
deixar de se fazer ao mar e refugiar-se no campo ou na cidade. A sua vida de
aventuras havia terminado e ele usava aquele momento para recapitular tudo.
Reviver os bons momentos e pensar na experiência ganha pelo que não havia
corrido bem. Uma espécie de sumário executivo.
Do local onde se
encontrava conseguia ver o porto e a azafama que por lá ia. Claramente na uma
zona mais exclusiva, onde um cruzeiro se preparava para zarpar, com vários
turistas entusiasticamente a dizer adeus a tudo e a todos na esperança de um
adeus de volta do cais. Porque será que achamos que haverá sempre um último
adeus e apenas não partimos. Porque o barco não se limita a ir, sem adeus ou um
qualquer “até um dia”?
Mais perto de si,
algumas pequenas embarcações preparavam-se também elas para sair. Uma em
particular dava ideia de ser uma pequena escuna que partia em passeio,
certamente por alguns dias pelo número de sacos que a sua tripulação havia
juntado na plataforma. Viam-se caixas de mantimentos, sacos de velas e afins.
Notava-se o capitão a dar indicações para os dois gaiatos que preparavam as
velas. Havia ali ordens claras a serem transmitidas e mãos eficientes, pelo
menos assim parecia, a acatar essas ordens. Tirando um gato que repousava na
coberta, todos os demais faziam algo.
Os seus olhos prendiam-se
naquele quadro. E com aquela imagem divagava nos seus pensamentos. Pensava nas
suas próprias viagens, desde as mais marcantes às últimas. Recordava com uma
certa nostalgia, como aquelas pessoas que têm saudades antes mesmo da partida.
E lembrava-se de uma frase ouvida “ter
saudades não é bom” ..... será? Só se for de viagens atuais pois que de
boas memórias temos sempre saudades. Não é bom porque representam algo que não
existe mais, mas é ótimo por serem isso, recordações de bons momentos vividos
..... e no final, a vida resume-se a isso ..... aos bons momentos passados que
fazem sentido ter vivido.
Recordava a última que
quase havia sido curta demais para deixar memórias, e de onde havia decidido
sair prematuramente, diria quase que clandestinamente. Fez-se esquecido no
porto. Havia preferido embarcar noutra viagem e daí a mudança no primeira
oportunidade possível. Mas nunca chegou a embarcar para a sua última viagem. E
isso deixava-o estranhamente contente.
Tudo na vida acontece
por um motivo. Guardava ainda nas mãos o livro que havia comprado para aquela
última viagem, porém, a história que lhe vinha à cabeça não era essa. A sua
mente divagava e imaginava o que Ishmael teria sentido antes de entrar no Pequot. Porque motivo não teria ele
desistido daquela viagem que tão maus presságios aparentava. Imaginava-o ali,
prestes a entrar e a pensar, como se revia a si mesmo. A tentação de partir
numa nova viagem pode ser grande, porém, quando tudo aponta para ser um mar de
tormentos e borrascas, há viagens que não devem ser iniciadas. No fundo sabia-o
e por isso havia arrepiado caminho a tempo.
Não se sentia nenhum
lobo do mar, mas sabia que havia tomado a decisão certa. Estranhamente a sua
última viagem era aquela que nunca chegaria a fazer. Ironias do destino.
Uma gaivota mais
barulhenta trouxe-o de volta à sua realidade, à medida que o sol descia
calmamente sobre a linha do horizonte. Os tons de laranja refletidos nas nuvens
pareciam uma fotografia de Photoshop
e assim ficou mais um pouco a observar e a admirar tamanha beleza. Aproveitou
para fazer festas aos seus meninos enquanto os últimos raios brilhavam e o
cinzento começou a surgir, fazendo-lhe notar que já começava a ficar frio. Um
bocejo e duas lambidelas sentenciaram a tarde. Eram horas de se fazer ao
caminho.
Levantou-se calmamente.
Na mão tinha ainda o livro embrulhado. A sua vida no mar tinha terminado e
aquele livro significava para ele uma última amarra. Não o iria ler, por isso,
não fazia sentido guardar algo que nem uma memória constituía. Nem boa, nem má.
Olhou para ele uma última vez e para o horizonte e, sem perder mais tempo,
deitou-o no caixote de lixo mais próximo.
Seguiram juntos pela
costa de volta à cidade ..... o mar será sempre uma parte da sua história, mas
sem mais viagens, apenas uma longa coleção de bons momentos vividos, que é o
que vale a pena guardar.